Borges de Pinho: “É importante que a atividade caritativa da Igreja não se dissolva na organização assistencial comum”
A conferência inaugural do ciclo que começou a assinalar os 62 anos da Cáritas Diocesana do Algarve e os
50 anos do seu Centro Infantil deixou claro que a ação sociocaritativa da Igreja deve ter algo de distintivo
como “um sinal da presença de Deus no mundo”.
“É importante que a atividade caritativa da Igreja não se dissolva na organização assistencial comum,
tenha alguma coisa de próprio – não tanto naquilo que faz, que pode ser exatamente ou aparentemente
igual ao olhar que somos capazes de ter ao que outros fazem –, mas tentemos fazer algo diferente”,
afirmou José Eduardo Borges de Pinho.
“No meio das múltiplas atividades existentes de ajuda ao próximo no campo social coloca-se a pergunta se a ação sociocaritativa da Igreja tem algo específico a oferecer, se a ação social a partir da fé se traduz em algo de diferente. Estamos simplesmente ao nível da filantropia e da solidariedade humanas ou há algo mais profundo que precisa de ser vivido e deve emergir na caridade cristã?”, questionou o professor catedrático jubilado da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa – que apresentou a sua reflexão sobre o tema “A ação sociocaritativa da Igreja – interpelações e desafios no contexto atual” na passada sexta-feira no auditório da Biblioteca Municipal de Tavira.
Neste sentido, lembrou que “os cristãos são chamados a reconhecer em cada ser humano um filho de Deus, um irmão, a ter outros critérios de abrangência e exigência a assumir atitudes de amor gratuito e misericordioso”.
O orador acrescentou então que a caridade cristã deve distinguir-se pela “dedicação ao outro”. “Esta dedicação ao outro quer dizer que a pessoa a quem queremos ajudar sinta a riqueza de humanidade de quem a procura ajudar e servir”, sustentou.
Borges de Pinho aludiu à necessidade de “reavivar o sentido autêntico evangélico da caridade cristã”. “A solidariedade é algo que, humanamente, devemos exigir, pedir e construir. Ela tem já um sentido cristão. Mas aquilo que entendemos por caridade é algo mais fundo”, afirmou, considerando que “não contradiz a solidariedade, mas dá-lhe uma outra dimensão e olhar, uma outra capacidade de ir mais além”.
O conferencista lembrou, no entanto, que “a vivência real da caridade cristã não acontece só com aqueles que se dizem cristãos”. “Sabemos que essa presença do agir gratuito de Deus vai para além das fronteiras que nós estabelecemos. Uma pessoa que, porventura, não é cristã ou que não sabe se é crente ou se não é, pode agir em verdadeira caridade cristã”, admitiu.
Borges de Pinho referiu-se à necessidade de “assumir a ação social caritativa como tarefa essencial da Igreja a todos os níveis da sua existência”. “A ação sociocaritativa que, como Igreja e como pessoas, procuramos fazer não é uma consequência da fé. É a nossa própria fé”, alertou, acrescentando que “a diaconia”, como “tarefa fundamental de toda a comunidade cristã”, “vai muito para além do gesto caritativo pontual e exige ser entendida como responsabilidade comunitária tal como a catequese ou a liturgia”.
“Em todas as comunidades tem que haver um serviço minimamente organizado de ajuda ao próximo”, prosseguiu, advertindo que “não pode ser um serviço qualquer”, mas “tem que ser algo que seja representativo, ativo ou atuante e que ao mesmo tempo possa participar naquilo que é a vida da comunidade”.
O orador desafiou assim a uma ação social “atenta às novas necessidades e aos novos problemas que vão surgindo”, porque “a Igreja é chamada a abrir-se, sem dramatismos e com criatividade, a novas formas de serviço e a gestos proféticos que interpelem consciências à luz do evangelho”, e “feita com amor gratuito”. “A caridade cristã é absolutamente gratuita, ou seja, não é realizada nunca com outros fins, nem muito menos para fins de proselitismo”, alertou na conferência promovida pela Cáritas Diocesana do Algarve.
Borges de Pinho acrescentou que “a atividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias”, mas defendeu a “abertura e disponibilidade das instituições da Igreja para uma cooperação leal com o Estado em ordem ao serviço das pessoas e suas necessidades, testemunhando assim o amor que anima a fé cristã”. “Nessa cooperação e no seu modo de agir, as instituições da Igreja não podem deixar de ter uma enorme preocupação de transparência interna e externa sob pena de ser minada pela base a credibilidade das suas iniciativas e ações”, advertiu. “Só essa transparência nos permite também ter a liberdade de pensamento e ação indispensável para uma atuação lúcida coerente e, eventualmente, crítica sempre que valores fundamentais da dignidade e da realização do bem comum sejam relativizados ou postos em causa”, complementou.
O palestrante alertou que “a possível, normal e indispensável cooperação com o Estado não pode fazer esquecer a importância, real do compromisso da comunidade cristã, enquanto suporte fundamental para a criação do desenvolvimento, a consolidação e a manutenção das iniciativas sociocaritativa da Igreja”.
Borges de Pinho exortou ainda ao desenvolvimento de “um trabalho contínuo de formação como suporte de um agir humano e cristãmente responsável”. Nesse sentido lembrou que a “formação técnico-profissional”, “absolutamente indispensável”, “não é suficiente porque para ser verdadeira competência técnico-profissional exige uma base elementar de humanidade e formação humana que cada um é chamado a desenvolver nas suas diversas vertentes”.
“Infelizmente também na Igreja se ignora completamente essa base elementar humana, sem a qual um agir tecnicamente adequado e até o testemunho cristão saem radicalmente comprometidos, senão mesmo postos em causa”, lamentou, acrescentando que “a ação social cristã tem que ir mais além também no aspeto também que é a formação cristã” que disse ser “algo importante e imperioso”.
Fonte: Folha de Domingo